Prestes a completar 35 anos de trabalho dedicados exclusivamente ao serviço público, o único carteiro da cidade de Areia, brejo paraibano, por 32 anos, Elias Alves Pereira, mais conhecido como ‘Mero dos Correios’, 59 anos, bate às portas da aposentadoria em outubro deste ano depois de trilhar uma intensa jornada de disciplina e responsabilidade aliada à obstinação.
Sem nunca ter faltado a nenhum expediente nesse período e sem nem mesmo ter apresentado um único atestado médico para justificar uma possível ausência, o empregado público do interior da Paraíba possui uma história exemplar de esforço e dedicação que contraria a imagem, muitas vezes negativa, do serviço público no Brasil.
Exercendo uma profissão cansativa e que requer, além de muita atenção, um bom condicionamento físico, o carteiro ingressou na profissão em outubro de 1978, com 24 anos, quando, após uma seleção para uma vaga, ficou na segunda colocação. Após 15 dias de trabalho, o primeiro colocado para a função, no entanto, entregou o cargo por considerá-lo exaustivo e sobrecarregado para apenas uma pessoa ‘dá conta’ e Mero acabou sendo convocado para assumir a vaga.
Hoje pai de três filhas, Mero dos Correios, que à época estava com a esposa grávida da primeira filha, tomou a responsabilidade para si e decidiu encarar o desafio de (sozinho), entregar as correspondências para os mais de 25 mil habitantes da cidade. Ele explica que esse senso de responsabilidade, todavia, veio com a paternidade.
Em uma época que não havia a facilidade do mundo virtual existente nos dias de hoje, o carteiro acordava mais cedo e saia mais tarde para não ter que deixar serviços pendentes para os dias posteriores, mesmo trabalhando mais que o horário do expediente e sem ganhar nenhuma hora extra por isso.
“Quando nos é dada uma oportunidade nós temos que agarrá-la e foi isso que fiz, tinha uma família para cuidar e aprendi que o homem é o responsável por sustentar sua família, se fui homem para fazer, também tinha que ser homem para assumir e manter uma casa e uma família então, quando fui chamado para o serviço, não pensei duas vezes e hoje estou completando meus 35 anos de serviço sem nenhuma mancha que pudesse sujar meu currículo”, comemorou.
Filho de mãe e pai agricultores, foi na infância que o carteiro aprendeu a importância da disciplina e o senso de responsabilidade, quando via os pais acordarem cedo para trabalhar no roçado. Um trabalho também cansativo, mas que, segundo ele, feito com dedicação sempre rendeu bons frutos.
SEM RECONHECIMENTO
Único carteiro da cidade durante 32 anos, Mero dos Correios, todavia, nunca recebeu o mérito do reconhecimento da empresa pelo empenho e esforço dedicados à estatal. Pelo contrário. Em vez de reconhecimento, o carteiro só recebia cobranças e pressões para bater as metas estipuladas pela diretoria regional dos Correios, sendo inclusive, em determinada época, obrigado a não só entregar cartas, mas também a vender os produtos oferecidos pela ECT (Empresa de Correios e Telegráfos).
Nesse mesmo período a empresa pública passou por várias greves, mas o funcionário paraibano, mesmo cobrado e pressionado, nunca aderiu a nenhuma paralisação. Não por medo de represálias, mas sim para que a população não fosse prejudicada com atrasos ocasionados pela intransigência da direção em ceder às negociações salariais.
“O reconhecimento e consideração ficaram apenas para os funcionários dos grandes centros, nós do interior, principalmente da Paraíba, somos apenas um número, uma matrícula e nada mais, nunca fui contemplado com gratificação ou até mesmo uma carta de parabéns, nada, nada, nada, apenas trabalho”, desabafou.
O funcionário dos Correios ainda lembra que sempre fez seu trabalho de acordo com o que considera correto, com uma boa conduta.
“Para a empresa, o funcionário fazer algo a mais é uma obrigação e não um diferencial. Nós do interior da Paraíba não somos e nem nunca fomos reconhecidos, fiquei 32 anos sozinho como carteiro na cidade e só nos últimos três anos é que enviaram mais um funcionário para cá e porque eu tive um acidente de trabalho e recebi a recomendação que não mais poderia fazer grandes esforços”, desabafou o carteiro, ao lembrar que em cidades vizinhas, com uma população menor, já havia um efetivo maior de carteiros, enquanto em Areia, para a empresa, apenas um era suficiente, já que esse ‘um’, que era ele, sempre deu conta do trabalho.
Apesar de não ter o reconhecimento da empresa, o carteiro disse que encontra no amor da família que construiu nessa jornada, a esposa Magna Dias e as três filhas, Vera, Eliagna e Márcia, a verdadeira motivação para ter se empenhado no trabalho todos esses anos.
“Saber que com meu trabalho proporcionei às minhas três filhas a oportunidade de estudar e adquirirem o diploma de curso superior é uma das minhas maiores recompensas, elas que só me deram e me dão orgulho mostram que o esforço dedicado nesses anos todos de trabalho valeu a pena”, disse emocionado.
Ao lembrar-se da esposa, Magna Dias, que na cidade ficou conhecida como Magna de Mero dos Correios, o carteiro não esconde o amor que ainda é latente, mesmo passados mais de 35 anos de união matrimonial.
“Minha esposa é meu maior reconhecimento, ela me deu filhas maravilhosas, sempre esteve do meu lado, sempre me incentivou, sempre me amou, sempre ouviu meus desabafos, às vezes reclamava por eu me dedicar demais à empresa, enfim, não só uma mulher, mas uma companheira que esteve e está comigo nesses mais de 35 anos”, declarou.
DIAS DIFÍCEIS
Após mais de três décadas sem ter apresentado um único atestado médico, em 2010, Mero dos Correios teve a jornada interrompida ao descobrir que estava com o baço rompido devido a uma queda de moto sofrida dias antes em um acidente de trabalho. A doença só foi detectada graças à exigência de exames periódicos solicitados anualmente pela empresa.
“Quando tenho que fazer entregas em locais distantes, uso a moto dos Correios e certo dia ao realizar um desvio, acabei passando por um monte de terra e caindo na moto. Na ocasião o guidão bateu forte na região da minha barriga, mas achei que era apenas uma pancada normal. Como nunca tinha apresentado um atestado, achei que por aquela pancada também não era necessário, mas quando fiz os exames, graças a Deus o rompimento do baço foi detectado a tempo, o médico disse que ele estava apenas por uma película e se tivesse estourado eu poderia ter morrido devido a uma hemorragia interna”, lembrou.
Por determinação médica, o carteiro teve que se afastar dos trabalhos pela primeira vez. Recebendo auxílio doença através do INSS, Mero dos Correios ficou três meses longe das ruas e essa foi a primeira vez que seu trabalho e esforço recebeu o reconhecimento verbal da gerência local.
“Areia não tinha nenhum outro carteiro e como eu estava impossibilitado à empresa tinha que encontrar um substituto e encontrou, no entanto, quando voltei eles disseram que preferiam a mim com 50% da capacidade, a um novato com 100% de saúde plena”, lembrou Mero, ao destacar que sempre teve consciência de que fez mais pela empresa, do que a empresa fez por ele em todos esses anos de serviço dedicados à estatal.
Além de perder o baço, o tempo de serviço também deixou o carteiro com algumas enfermidades, a exemplo de hipertensão e diabetes. Hoje ele toma remédio controlado para amenizar o impacto das doenças e teme pela possibilidade de perder o Plano de Saúde dos Correios quando se aposentar.
“Espero que o Sindicato consiga a manutenção do plano de saúde também durante a aposentadoria, pois já velhos, precisamos de mais assistência e mais cuidados, principalmente porque perdemos uma boa parte da nossa saúde pelo trabalho na empresa durante todos esses anos”, disse.
HONESTIDADE TESTADA
Nem mesmo a trajetória sem manchas e sem deslizes foi suficiente para isentar o assíduo carteiro da prerrogativa da dúvida. Há cerca de cinco anos Mero dos Correios passou, literalmente, por uma prova de honestidade, quando teve sua conduta testada por uma investigação que tentava descobrir quais funcionários estavam envolvidos em receptação de mercadorias adquiridas de forma ilícita.
“Veio uma pessoa até minha casa fazer uma proposta para que eu ficasse recebendo umas mercadorias com endereços fictícios e me solicitaram que eu repassasse o material em troca de uma quantia em dinheiro. Eu logo vi que aquilo era coisa errada, pois quando não encontramos o endereço temos que fazer a devolução da mercadoria para o endereço do remetente, e foi isso que eu disse, que não queria, que não contassem comigo, pois não iria sujar minha carreira por conta de uma mixaria”, lembrou. Ainda segundo o carteiro, tempos depois foi descoberto que os homens que fizeram a tal proposta estavam tentando descobrir a existência de corrupção na estatal.
O DIA A DIA
O carteiro lembra que uma história de 35 anos no serviço público não tem apenas glórias, mas também altos e baixos. “Arrebente e estafe quantos cavalos necessários, mas entregue a carta com toda a urgência. Se não arrebentar uma dúzia de cavalos, no caminho, nunca mais será correio, tenha consciência do que faz!” Estas foram às palavras do Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, que sintetizam muito bem o quão significativa é a profissão.
Mero diz que adora ser carteiro, e que se fosse para reclamar de alguma coisa seria dos próprios receptores, que no descaso do dia-a-dia, entres outras coisas não prendem seus cães, o que faz com que o carteiro tenha que manter distância da residência.
“Já levei muito susto de cachorro e até mordida, mas nada de grave, mas é bom manter a distância sempre”, disse.
Mero ainda destaca que as pessoas deveriam se preocupar mais com as caixas receptoras, que na maioria das vezes não existem, e que sem elas o documento pode ser facilmente extraviado.
“Chegamos às seis da manhã, paramos ao meio-dia e trabalhamos até o final da tarde. Aprendi a gostar do que me foi dado, e o que me foi dado foi à oportunidade de ser carteiro. Gostaria de ter estudado mais, me formado em um curso superior, mas naquela época tudo era mais difícil, então tive que trabalhar para manter minha família. Hoje, graças a esse trabalho, consegui manter a casa e transmitir o valor e a importância dos estudos para as minhas três filhas, hoje todas formadas em curso superior”, destacou.
‘CAUSOS’ ENGRAÇADOS
Falta de reconhecimento à parte, a profissão carteiro rendeu a Mero dos Correios também boas histórias, principalmente devido à exposição ao sol, à chuva e aos animais domésticos que ora atrapalhavam, ora o colocavam para correr. Como o trabalho é exaustivo, Mero conta algumas situações que, se não fossem trágicas, seriam cômicas.
“Areia tem muita ladeira, certa vez eu já havia percorrido todo o percurso e já voltava para o Centro da cidade quando uma pessoa lá no final da ladeira começou a gritar, Meroo…Merooo…Meroo…e eu cansado, um sol de lascar, ainda com um malote cheio de correspondências para entregar nas outras ruas, desci, fui ao encontro da pessoa e lá ela me pergunta: tem correspondência pra mim?. ..(risos) Desci tudo só para dizer que não tinha, se tivesse eu teria entregado”,contou.
Antes de sair para o trabalho, uma das funções do carteiro é separar as correspondências por endereços, fazer a triagem, para poder fazer a entrega. “Era véspera de Natal, eu tinha uma pilha de correspondências pra entregar, a maioria cartões de boas festas. Fiz um bolo de correspondência, separei por ruas e coloquei na mão e comecei a caminhada e a entrega, de repente chega um cidadão bêbado, pega no meu braço e começa a chacoalhar dizendo: Merooo há quanto tempo, você é um caba bom danado. E foi assim que eu fiquei de coro quente, ao ver as cartas todas caindo da minha mão e o trabalho de triagem todo jogado por água abaixo”, lembrou dando risadas da situação que naquele momento o irritou.
Também no Natal, vez por outra o carteiro se vestia de papai Noel dos Correios e uma história com uma criança de quatro anos o marcou, pela inocência da situação.
“Em Areia todos me conhecem, desde os adultos, idosos até criancinhas também. Me vesti de papai Noel e fui fazer a entrega dos presentes em uma casa da periferia, de repente a minha barba de papai Noel caiu. A criança, uma menininha de quatro anos olhou para mim como se tivesse descoberto a identidade secreta do bom velhinho e surpresa disse para a mãe: MAMÃE!!!! PAPAI NOEL É MERO (risos). Ela não achava que Mero era papai Noel e sim que Papai Noel era Mero, foi muito engraçado, todos rimos bastante”, lembrou.
Assim como o município de Areia, a história do carteiro Mero entra para o Patrimônio Cultural da cidade, com destaque para um legado de superação, disciplina, dedicação, responsabilidade e acima de tudo honestidade.
Infelizmente hoje, em pleno século XXI, esse tipo de dedicação é muitas vezes substituído pelo ócio e falta de determinação de jovens que poderiam, em um amanhã, também virarem mais um paraibano que se destaca no meio de tantas pessoas.
Márcia Dias
PB Agora
Foto: Clemilson Irmão/ Márcia Dias
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